Sucesso do modelo de autorregulação da ANBIMA é legitimado por vários fatores
Livro de autoria do presidente do nosso Conselho de Ética, Valdecyr Gomes, discorre sobre por que as penas impostas às instituições que desobedecem às regras não são contestadas na Justiça
Por que penalidades aplicadas pela Associação não são contestadas judicialmente pelas instituições que descumprem as regras da autorregulação? A busca por uma resposta a essa questão é o mote do livro Autorregulação voluntária nos mercados financeiro e de capitais – O caso ANBIMA, que acaba de ser lançado por Valdecyr Gomes (foto), presidente do nosso Conselho de Ética. A obra é resultado da dissertação de mestrado dele pela Fundação Getulio Vargas (FGV-Rio).
O trabalho investiga por que os perdedores acatam as decisões da autorregulação da ANBIMA. Para isso, analisa casos registrados nos primeiros 20 anos do modelo, até 2018, além de julgamentos do CRSFN (Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional). “Chamava atenção o fato de as multas aplicadas pela ANBIMA serem bem maiores do que as dos demais supervisores do mercado e, mesmo assim, os punidos não recorriam judicialmente da pena. Isso me intrigava e decidi investigar”, comenta Valdecyr, advogado com longa experiência no mercado financeiro e passagens pelos bancos Garantia, Brascan e Brookfield, além de dois mandatos como conselheiro do CRSFN.
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O curioso, destaca o autor, é que os poucos casos de contestação não questionavam o valor da multa, mas o fato de terem sido expulsos da ANBIMA. “Mais relevante do que a multa, era a proibição de fazerem parte da Associação, o que é paradoxal”, avalia.
Ao analisar os 194 processos julgados pela Associação até 2018, a constatação é de que não existe uma única causa para a obediência às decisões, mas sim um conjunto de fatores, a começar pelo caráter privado e voluntário da autorregulação. Outros aspectos apontados na obra são o fato de a pena ser aplicada por experts (validados pelos punidos), a qualidade da norma e até o risco reputacional de recorrer da decisão.
O prefácio do livro é assinado por Alfredo Setúbal, um dos “pais” da nossa autorregulação. Foi sob a liderança dele, como vice-presidente da então ANBID, em 1998, que nasceu o primeiro código de melhores práticas – o Código de Ofertas Públicas. A obra traz também, por meio de QR Code, um conjunto de jurisprudência do CRSFN, da CVM e do BC para consulta.
Na entrevista a seguir, Valdecyr fala sobre o que o motivou a escolher esse tema para sua dissertação de mestrado, destaca a importância da supervisão para o sucesso do modelo e comenta os desafios de se ter regras que acompanhem o dinamismo do mercado.
Por que a escolha desse tema para a sua dissertação de mestrado? Qual foi a motivação?
A ideia não surgiu. Seria mais correto dizer que ela se impôs a partir das minhas atuações como membro dos conselhos da ANBIMA e do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro. Disso foi crescendo o meu interesse por entender a motivação de os punidos reagirem de forma tão contrastante nos dois casos. Analisei os dois universos: no Conselho de Recursos as decisões se impõem pela força da lei, de forma coercitiva, enquanto na ANBIMA, por ser uma associação, contempla-se uma combinação de pessoas que desejam estabelecer um padrão para a indústria em que atuam. A primeira multa de um código de autorregulação da ANBIMA, em 2003, chegou a R$ 1,7 milhão e, até 2018 (período compreendido na avaliação), os apenados não recorriam das decisões da entidade. Eu queria desvendar esse fenômeno e entender as razões.
A obra aponta vários motivos para que as decisões da autorregulação da ANBIMA sejam acatadas sem apelo ao Judiciário. Você apontaria alguns deles como predominantes?
Eu parti de vários questionamentos para entender as razões de obediência aos códigos de autorregulação. Seria porque as regras são feitas por profissionais reconhecidos pelo mercado, assim como os julgamentos são conduzidos por experts nos temas? Ou porque a justiça tem pouco conhecimento do mercado financeiro e, por isso, não vale a pena levar demandas até ela? Seria o rito do processo, na autorregulação, que é muito bem-feito? Trabalhei com todas essas hipóteses e muitas outras, como o peso institucional dos julgadores e o risco reputacional ao recorrer de uma punição por ter descumprido normas autorreguladas.
Minha conclusão é de que não há uma única razão para explicar a obediência à autorregulação da ANBIMA. As normas obedecem aos critérios de racionalidade, os julgadores são pessoas muito qualificadas, experts no assunto, além de a reputação e a capacidade institucional da ANBIMA terem peso, o que desestimula questionamentos. Temos um caleidoscópio de motivações em que, dependendo do ângulo que você olha, determinado fator, ou fatores, motivam a adesão às punições sem questionamento judicial.
Você identificou, no período de 20 anos, apenas três casos que foram parar na Justiça. Poderia comentá-los ou as motivações dos questionamentos?
Um dos casos é segredo de Justiça e o outro deriva deste primeiro. Então eu não poderia comentar. Mas o que importa é que todos têm uma mesma fundamentação. Paradoxalmente, questionam o fato de não poderem mais fazer parte da ANBIMA. Estão brigando para que possam integrar a entidade que os puniu, o que é, no mínimo, muito interessante.
Qual é seu objetivo ao perenizar essa história, debatida na dissertação de mestrado e que agora sai em formato de livro?
Eu construí toda minha carreira profissional no mercado financeiro. O livro é uma retribuição a tudo que o mercado financeiro me deu. Por isso, toda a verba resultante da venda será doada para endowments (fundos que financiam atividades acadêmicas) a fim de que realimente a cadeia e contribua para mais pesquisas e um mercado cada vez mais saudável.
O levantamento que embasou o livro compreende o período até o final de 2018. Depois disso, já tivemos casos de contestação na Justiça. Podemos entender que o mercado mudou e/ou que os motivos para a não judicialização apontados no livro não são perenes?
Essa constatação é compatível com minha conclusão do livro. O dinamismo do mercado financeiro, a velocidade com que ele opera, não é compatível com uma resposta que dure para sempre. Talvez o equilíbrio perfeito de razões que aponto no livro tenha mudado um pouco e, neste momento, tenha havido contestação. Não há garantia de que nunca vá haver contestação. É a ideia do caleidoscópio em que um ou outro fator ganha ou perde relevância em determinada situação ou momento.
Qual é a importância da supervisão da ANBIMA para o sucesso do modelo de autorregulação?
Não tenho dúvida que a supervisão é fundamental por ter um viés didático, educativo e não punitivo. Quando a supervisão chega ao ponto de abrir um processo é porque a atitude do supervisionado já se mostrou de rebeldia em relação às regras. Antes, a instituição foi orientada e teve chances de se ajustar. As normas são claras e conhecidas por todos. O pressuposto da supervisão da ANBIMA é de que a grande maioria dos regulados age de boa-fé dentro das regras e, eventualmente, comete algum erro. O objetivo da Associação é manter o padrão. A punição, em certa medida, não é para punir quem age em desconformidade às regras, mas é uma forma de prestar contas, de se justificar àqueles que agem dentro das regras.
É inquestionável o caráter histórico que a obra tem para a ANBIMA ao levantar os vários motivos para o sucesso do modelo de autorregulação. Na sua avaliação, como assegurar que esse sucesso se perpetue?
Só tem um desafio e eu não arriscaria dizer nada além disso. É preciso que haja a predisposição de mudar permanentemente de acordo com novas situações que dão base à autorregulação. Não tem receita pronta para lidar com o futuro. Mas a predisposição de acompanhar as mudanças deixarão a autorregulação na vanguarda e ocupando aquele vácuo que sempre haverá entre regulação estatal e práticas de mercado. O mercado tem dinâmica acelerada, saudável, importante para o desenvolvimento do país. O governo por natureza não tem a mesma velocidade.
Os mercados financeiro e de capitais vêm ganhando representatividade na matriz de financiamento e também se sofisticando. Isto impõe algum desafio adicional, pensando na necessidade de mudanças mais frequentes nos códigos? Fica mais difícil acompanhar o novo ritmo?
Eu diria que não, embora pareça contraditório no caso da autorregulação. As mesmas pessoas que estão acelerando o mercado são integrantes do quadro da autorregulação. O fato de serem os mesmos agentes permite que o código acompanhe o mercado. Por isso que é muito importante haver participação dos integrantes do mercado na formulação das normas de autorregulação. Eles sabem onde estão os elos mais fracos da corrente e que o poder constituído – CVM ou BC – terá mais dificuldade em perceber essas deficiências.
Outras entidades – a OAB é um exemplo – trabalham para construir um modelo próprio de autorregulação. Até que ponto o modelo da ANBIMA pode servir de exemplo?
A autorregulação da ANBIMA pode servir sim para a OAB (ou outras entidades) por todos os méritos que o modelo tem. Todas as entidades que têm algum interesse em exercitar um nível elevado de padrão de qualidade podem optar pela autorregulação. Na autorregulação, as consequências vêm muito rápido e não compensa agir em desacordo. A ideia da ineficiência estatal, que estimula a prática do crime, não existe na autorregulação. A autorregulação da ANBIMA é boa para a ANBIMA, mas como modelo tem valor, sim, para outras entidades. O modelo da Associação pode servir como base informativa para que outras entidades, a exemplo da OAB, estabeleçam os critérios valorativos que devem reger a autorregulação deles.
Qual é a importância de ter o prefácio do seu livro assinado pelo autor intelectual da autorregulação voluntária?
Uma satisfação enorme, uma honra ser prestigiado por esse ato de gentileza e generosidade do Alfredo. Não tenho como agradecer por isso. Agora, acima de tudo, não foi uma escolha, pois novamente o nome dele se impôs. Eu escrevi o livro, mas a obra basicamente é dele. Ele foi um líder do processo de implantação da autorregulação nos mercados financeiros e de capitais no Brasil.